03 Dec 2019

O maior problema com a matéria escura pode ser um simples erro numérico

Por Ethan Siegel
Traduzido pela equipe do SPRACE *

 

Uma galáxia composta apenas por matéria normal (esquerda) apresentaria velocidades de rotação muito mais baixas em sua periferia do que em seu centro, semelhante à maneira como os planetas no sistema solar se movem. No entanto, as observações indicam que as velocidades de rotação são amplamente independentes do raio do centro galáctico (direita), levando à inferência de que uma grande quantidade de matéria invisível (escura) deve estar presente (WIKIMEDIA COMMONS USER INGO BERG/FORBES/E. SIEGEL)

 

O grande objetivo da cosmologia envolve a maior ambição de qualquer campo científico: entender o nascimento, crescimento e evolução do universo como um todo. Isso inclui todas as partículas e antipartículas, como elas interagem e como o tecido do espaço-tempo evolui. Em princípio, se você souber as condições iniciais do universo – incluindo do que ele é feito, como seu conteúdo está distribuído e quais são as leis da física – você pode simular como ele seria em qualquer momento no futuro.

Na prática, porém, essa é uma tarefa extremamente difícil. Alguns cálculos são fáceis de fazer e conectar nossas previsões teóricas a fenômenos observáveis é claro e fácil. Em outros casos, essa conexão é muito mais difícil de fazer. Essas conexões fornecem os melhores testes observacionais de matéria escura, que hoje representa 27% do universo observável. Mas em um teste em particular, os modelos de matéria escura tem falhado repetidamente. Enfim os cientistas podem ter descoberto o porquê e tudo pode ter sido apenas um erro numérico.

Em uma escala logarítmica, o universo próximo a nós contém o sistema solar e nossa galáxia, a Via Láctea. Mas, muito além, estão todas as outras galáxias do universo e, eventualmente, os momentos imediatamente seguintes ao próprio Big Bang. Embora não possamos observar mais longe do que esse horizonte cósmico, que atualmente está a uma distância de 46,1 bilhões de anos-luz de distância, haverá mais universo para estudarmos no futuro. O universo observável contém 2 trilhões de galáxias hoje, mas com o passar do tempo, mais universo se tornará observável para nós, talvez revelando algumas verdades cósmicas que hoje ainda estão escondidas (WIKIPEDIA USER PABLO CARLOS BUDASSI)

 

Quando você pensa em como o universo é hoje, é possível ver imediatamente como ele é diferente quando examinado em escalas de tamanho diferentes. Na escala de uma estrela ou planeta individual, o universo é incrivelmente vazio, com um objeto sólido apenas aqui ou ali. O planeta Terra, por exemplo, é cerca de 1030 vezes mais denso que a média cósmica. Mas, à medida que avançamos para escalas maiores, o universo se torna muito mais homogêneo.

Uma galáxia individual, como a Via Láctea, pode ser apenas algumas milhares de vezes mais densa do que a média cósmica. Se examinarmos o universo nas escalas de grandes grupos ou aglomerados de galáxias (abrangendo distâncias de cerca de 10 a 30 milhões de anos-luz), as regiões mais densas são apenas algumas vezes mais densas que uma região típica. Nas maiores escalas de todas – de um bilhão de anos-luz ou mais, onde aparecem as maiores características da teia cósmica – a densidade do universo é a mesma em todos os lugares, com uma precisão de até 0,01%.

Na cosmologia moderna, uma teia em larga escala de matéria escura e matéria normal permeia o universo. Nas escalas de galáxias individuais e menores, as estruturas formadas pela matéria são altamente não lineares, com densidades que se afastam da densidade média em quantidades enormes. Em escalas muito grandes, no entanto, a densidade de qualquer região do espaço é muito próxima da densidade média: com precisão de cerca de 99,99% (WESTERN WASHINGTON UNIVERSITY)

 

Se modelarmos nosso universo de acordo com as melhores previsões teóricas, apoiadas no conjunto completo de observações, espera-se que ele comece repleto de matéria, antimatéria, radiação, neutrinos, matéria escura e um pouquinho de energia escura. Ele deveria ser quase perfeitamente uniforme, com regiões superdensas e subdensas ocorrendo na escala de 1 vez em 30.000.

Em seus estágios iniciais, inúmeras interações aconteceram simultaneamente:

  • a atração gravitacional fez com que as regiões superdensas crescessem;
  • as interações partícula-partícula e fóton-partícula se dispersaram, fornecendo momento apenas para a matéria usual, não para a matéria escura;
  • feixes de radiação eram emitidos de regiões superdensas que eram pequenas o suficiente em escala, lavando estruturas que se formaram muito cedo (em escala muito pequena).

As flutuações na radiação cósmica de fundo (CMB), medidas por COBE (grandes escalas), WMAP (escalas intermediárias) e Planck (pequenas escalas), são todas consistentes com seu surgimento a partir de um conjunto de flutuações quânticas invariantes em escala e com uma magnitude tão baixa que elas não poderiam ter surgido de um estado arbitrariamente quente e denso. A linha horizontal representa o espectro inicial de flutuações (da inflação), enquanto a ondulada representa como as interações entre gravidade e radiação/matéria moldaram o universo em expansão nos seus estágios iniciais. A CMB é uma das evidências mais fortes que apoiam a matéria escura e a inflação cósmica (NASA/WMAP SCIENCE TEAM)

 

Como resultado, quando o universo tinha 380.000 anos já existiam padrões intrincados de flutuações de densidade e temperatura, sendo que as maiores flutuações ocorriam em escalas muito específicas, onde a matéria normal está em colapso máximo e a radiação tem menores chances de escapar. Em escalas angulares menores, as flutuações exibem picos e vales periódicos que diminuem em amplitude, exatamente como poderia se prever teoricamente.

Como as flutuações de densidade e temperatura, ou seja, a distância das densidades reais em relação à densidade média, ainda são muito pequenas (muito menores do que a densidade média), essa é uma previsão fácil de fazer, podendo ser feita analiticamente. Esse padrão de flutuações deve aparecer, observacionalmente, tanto na estrutura em larga escala do universo (mostrando correlações e anticorrelações entre galáxias) quanto nas imperfeições de temperatura impressas na radiação cósmica de fundo (CMB).

As flutuações de densidade que aparecem na CMB surgem dependentes das condições nas quais o universo nasceu e do seu conteúdo de matéria e energia. Essas flutuações iniciais fornecem as sementes para a estrutura cósmica moderna, incluindo estrelas, galáxias, aglomerados de galáxias, filamentos e vazios cósmicos em larga escala. A conexão entre a luz inicial do Big Bang e a estrutura em larga escala de galáxias e aglomerados de galáxias que vemos hoje é uma das melhores evidências que temos para o quadro teórico do universo apresentado por Jim Peebles (CHRIS BLAKE AND SAM MOORFIELD)

 

Na cosmologia física, esses são os tipos de previsões mais fáceis de fazer a partir de uma perspectiva teórica. É possível calcular facilmente como um universo perfeitamente uniforme – com a mesma densidade exata em todos os lugares – evoluirá, mesmo misturando matéria normal, matéria escura, neutrinos, radiação, energia escura, etc. É assim que se calcula como o espaço-tempo evoluirá, dependendo do seu conteúdo.

Também é possível adicionar imperfeições nesse espaço-tempo. É possível extrair aproximações muito precisas modelando a densidade a qualquer momento pela densidade média mais uma pequena imperfeição (positiva ou negativa) sobreposta a ela. Enquanto as imperfeições permanecerem pequenas em comparação à densidade média (de fundo), os cálculos de como essas imperfeições evoluem permanecem fáceis. Quando essa aproximação é válida, dizemos que estamos no regime linear e esses cálculos podem ser feitos a mão, sem a necessidade de uma simulação numérica.

A reconstrução em 3D de 120 mil galáxias e suas propriedades de agrupamento, inferidas pelo desvio para o vermelho e pela formação de estruturas em larga escala. Os dados dessas pesquisas nos permitem realizar contagens profundas de galáxias. Esses dados são consistentes com um cenário de expansão de um universo inicial quase perfeitamente uniforme. No entanto, se olharmos para o universo em escalas menores, descobriremos que os desvios da densidade média são enormes e devemos entrar no regime não linear para calcular (e simular) as estruturas efetivas que são formadas (JEREMY TINKER AND THE SDSS-III COLLABORATION)

 

Essa aproximação é válida no início, em grandes escalas cósmicas, onde as flutuações de densidade permanecem pequenas em comparação com a densidade cósmica média geral. Isso significa que medir o universo nas maiores escalas cósmicas deve ser um teste muito forte e robusto da matéria escura e do nosso modelo do universo. Não deveria nos surpreender que as previsões de matéria escura, particularmente nas escalas de aglomerados de galáxias e maiores, sejam extremamente bem-sucedidas.

No entanto, em escalas cósmicas menores – particularmente nas escalas de galáxias individuais e menores – essa aproximação não é tão boa. Depois que as flutuações de densidade no universo se tornam grandes em comparação com a densidade de fundo, não se pode mais fazer os cálculos manualmente. Em vez disso, são utilizadas simulações numéricas para ajudar na transição do regime linear para o não linear.

Nos anos 90, começaram a surgir as primeiras simulações que aprofundaram o estudo da formação de estruturas não lineares. Em escalas cósmicas, elas nos permitiram entender como a formação dessas estruturas prosseguiria em escalas relativamente pequenas, que seriam afetadas pela temperatura da matéria escura, ou seja, se elas nasceram se movendo rápida ou lentamente em relação à velocidade da luz. A partir dessas informações (e observações de estruturas em pequena escala, como as características de absorção de nuvens de gás hidrogênio interceptadas por quasares), conseguimos determinar que a matéria escura deve ser fria, e não quente, para reproduzir as estruturas que vemos.

Os anos 90 também viram as primeiras simulações de halos de matéria escura que se formam sob a influência da gravidade. As várias simulações tinham uma ampla variedade de propriedades, mas todas exibiam algumas características comuns, incluindo:

  • uma densidade (ρ) máxima no centro,
  • que cai em uma taxa determinada (como ρ ~ r-1 a r-1,5) até atingir uma certa distância crítica que depende da massa total do halo,
  • que então passa a cair em uma taxa diferente e mais acentuada (como ρ ~ r-3) até ficar abaixo da densidade cósmica média.

Quatro perfis diferentes de densidade de matéria escura de acordo com simulações, juntamente com um perfil isotérmico (modelado) em vermelho que melhor combina com as observações, mas que as simulações não conseguem reproduzir (R. LEHOUCQ, M. CASSÉ, J.-M. CASANDJIAN, AND I. GRENIER, A&A, 11961 (2013))

 

Essas simulações preveem o que é conhecido como “halos concentrados”, porque a densidade continua a subir nas regiões mais internas, além do que deveria, em galáxias de todos os tamanhos, incluindo as menores. No entanto, as galáxias de baixa massa que observamos não exibem movimentos rotacionais (ou dispersões de velocidade) que são consistentes com essas simulações; eles se encaixam muito melhor em “halos similares a núcleos” ou halos com densidade constante nas regiões mais internas.

Esse problema, conhecido na cosmologia como “problema do halo concentrado”, é um dos mais antigos e mais controversos para a matéria escura. Em teoria, a matéria deve cair em uma estrutura gravitacionalmente ligada e sofrer o que é conhecido como relaxamento violento, onde um grande número de interações faz com que objetos com massa maior caiam em direção ao centro (tornando-se mais firmemente ligados), enquanto os de menor massa sejam levados para as periferias (tornando-se menos firmemente vinculados) e podendo, até mesmo, serem expulsos por completo.

Messier 15, um exemplo típico de um aglomerado globular incrivelmente antigo. As estrelas no interior são bastante vermelhas, em média, com as mais azuis formadas pelas fusões das antigas e mais vermelhas. Esse aglomerado é altamente relaxado, o que significa que as massas mais pesadas estão no centro, enquanto as mais leves foram levadas para uma configuração mais difusa ou ejetadas por completo. Esse efeito do relaxamento violento é um processo físico real e importante, mas pode não ser representativo da física real presente em um halo de matéria escura (ESA/HUBBLE & NASA)

 

Como fenômenos semelhantes ao relaxamento violento foram observados em simulações, e todas elas tinham essas características, presumimos que elas eram representativas da física real. No entanto, também é possível que elas não representem a física real, mas sim um artefato numérico inerente à própria simulação.

Você pode pensar nisso da mesma maneira que pensa em aproximar uma onda quadrada (onde o valor de sua curva alterna periodicamente entre +1 e -1, sem valores intermediários) por uma série de curvas de onda senoidal: uma aproximação conhecida como uma série de Fourier. À medida que você adiciona números progressivamente maiores de termos com frequências cada vez maiores (e amplitudes progressivamente menores), a aproximação fica cada vez melhor. Você pode ficar tentado a pensar que, se somasse um número infinitamente grande de termos, obteria uma aproximação arbitrariamente boa, com erros muito pequenos.

É possível aproximar qualquer curva com uma série infinita de ondas oscilantes (semelhante a uma dimensão de movimento em torno de círculos de tamanhos diferentes) com frequências crescentes para alcançar aproximações cada vez melhores. No entanto, não importa quantos círculos você usa para aproximar uma onda quadrada, sempre haverá uma “ultrapassagem” do valor desejado em cerca de 18%: um artefato numérico que persiste pela natureza da própria técnica de cálculo (ROCKDOCTOR/MGUR)

 

O problema é que… isso não é verdade. Você percebe como, mesmo ao adicionar mais e mais termos à sua série de Fourier, você ainda vê uma diferença muito grande sempre que faz a transição de um valor de +1 para -1 ou de -1 para +1? Não importa quantos termos você adicionar, essa diferença sempre estará lá. Além disso, a série não tende a uma assíntota de valor 0 quando você adiciona mais e mais termos, mas sim a um valor substancial (cerca de 18%) que nunca fica menor. Esse é um efeito numérico da técnica usada, não um efeito real da onda quadrada real.

Notavelmente, um novo artigo de A.N. Baushev e S.V. Pilipenko recém-publicado na revista Astronomy & Astrophysics, afirma que as cúspides centrais vistas nos halos da matéria escura são artefatos numéricos de como nossas simulações lidam com sistemas de muitas partículas interagindo em um pequeno volume de espaço. Em particular, o “núcleo” do halo que se forma o faz por causa das especificidades do algoritmo que faz a aproximação da força gravitacional, não por causa dos efeitos reais do relaxamento violento.

Os modelos de matéria escura atuais (curvas superiores) não equivalem às curvas de rotação (curva preta), como o modelo em que não há matéria escura. No entanto, modelos que permitem que a matéria escura evolua com o tempo, conforme o esperado, equivalem-se notavelmente bem. É possível, como sugerido por trabalhos recentes, que a incompatibilidade entre simulações e observações possa ser devida a um erro inerente ao método de simulação utilizado (P. LANG ET AL., ARXIV:1703.05491, SUBMITTED TO APJ)

 

Em outras palavras, as densidades de matéria escura que derivamos dentro de cada halo a partir de simulações podem não ter nada a ver com a física que governa o universo; em vez disso, elas podem ser simplesmente artefatos numéricos dos métodos que estamos usando para simular os halos. Como os próprios autores afirmam,

Esse resultado gera dúvidas sobre os critérios universalmente adotados sobre a confiabilidade de simulações no centro de halos. Embora tenhamos usado um modelo de halo que, teoricamente, provou ser estacionário e estável, ocorre uma espécie de ‘relaxamento violento’ numérico. Suas propriedades sugerem que é altamente provável que esse efeito seja responsável pela formação do halo central na modelagem cosmológica da estrutura em larga escala e, consequentemente, o “problema do halo concentrado” não passaria de um problema técnico de simulações com N-corpos.” – Baushev e Pilipenko.

Não é surpreendente que os únicos problemas da matéria escura na cosmologia ocorram em escalas cosmologicamente pequenas, até o regime não linear da evolução. Por décadas, quem era contrário à teoria da matéria escura se prendeu a esses problemas de pequena escala, convencidos de que revelariam as falhas inerentes à matéria escura e uma verdade mais profunda.

De acordo com modelos e simulações, todas as galáxias devem ser incorporadas em halos de matéria escura, cujas densidades atingem o pico nos centros galácticos. Em escalas de tempo suficientemente longas, de talvez um bilhão de anos, uma única partícula de matéria escura dos arredores do halo completará uma órbita. Os efeitos de gases, formação de estrelas, supernovas e radiação complicam esse ambiente, tornando extremamente difícil fazer previsões universais sobre a matéria escura, mas o maior problema pode ser que o problema do halo concentrado previsto por simulações nada mais seja do que artefatos numéricos (NASA, ESA, AND T. BROWN AND J. TUMLINSON (STSCI))

 

Se este novo artigo estiver correto, no entanto, a única falha na teoria da matéria escura é que os astrônomos obtiveram um dos primeiros resultados de simulação – que dizia que a matéria escura forma halos concentrados no centro de galáxias – e acreditaram prematuramente em suas conclusões. Na ciência, é importante verificar seu trabalho e ter seus resultados verificados de forma independente. Mas, se todo mundo está cometendo o mesmo erro, essas verificações não são independentes.

Descobrir se os resultados dessas simulações se devem à física real da matéria escura ou às técnicas numéricas que escolhemos pode acabar com o maior debate sobre a matéria escura. Afinal, se for devido à física real, o problema do halo concentrado continuará sendo um ponto de tensão nos modelos de matéria escura. Mas, se for devido à técnica que usamos para simular esses halos, uma das maiores controvérsias da cosmologia pode evaporar da noite para o dia.

 

*Traduzido do artigo original de Ethan Siegel em “Starts With A Bang!”
(https://www.forbes.com/sites/startswithabang/2019/10/18/dark-matters-biggest-problem-might-simply-be-a-numerical-error/#15ebec2f8979)

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